domingo, setembro 16, 2007

Ainda sobre bichos (um rascunho)

Vi os olhos esbugalhados, redondos e listrados pela jaula. A barba pendia para um canto, amassada. Eram os seus olhos como me enxergaram, saí dali e deixei com fome o bicho. No trailer do Circo, no espelho eram os olhos vermelhos, ela deitada atrás de mim eu não vi, mas senti sua nudez. Consertei a barba, cozinhei uma batata, fechei o zíper e fui embora.

Senti sua falta, era loura e trapezista, voava alto enquanto eu esvaziava uma garrafa de cachaça, não era a hora do espetáculo ainda. Ela pediu para descansar, observei o picadeiro vazio, com o olhar fixo, uma hora, duas, o tempo não tinha calma. No escuro, fiz escolta ao trailer, mas o bicho precisou de mim e não pude esperá-la. Não tive como socorrê-lo, nesse dia estava bastante doente e eu me esquecera dele, havia no corpo morto uma acusação a mim. A cena estava parada, hesitei pensar, agir, por um tempo torturante se alguém me visse de fora, mas eu ali não sentia nada, talvez ocorrera um longo hiato antes de me dar conta. Falhei. Fiquei velando ali na jaula, não o enterrei ou coisa parecida, não fui ao espetáculo da noite, e o seu cheiro era de amor, passara um grupo de pessoas reclamando, mas eu queria entender porque aquele mau cheiro me trazia a idéia de amor.


Quando a vi no outro dia, pediu que eu entrasse logo de imediato, sentiu o cheiro de cachaça, viu meus olhos lacrimejarem, viu a minha feiúra, e deixou que eu deitasse em seu colo, para chorar como se houvesse alguém partilhando a razão que eu não explanei. Rocei-lhe o sexo com o nariz de catarro, usei seu corpo posteriormente, ela permaneceu o tempo todo em silêncio como se concedesse para mim uma caridade, e censurasse a minha total falta de carinho. Amanheci ali, não quis embora, ela saiu, fiquei o dia inteiro no trailer, esperei que voltasse para deitar em seu colo. Eu sei pensar, mas não sei conversar, isto aqui é o meu pensamento, ele poderia transformar-se em uma carícia sobre o cabelo dela. Ela tenta arrancar palavras de mim, pedindo que eu me organize, mas eu pareço ser tão miserável quando falo, tenho medo dela deixar de cuidar de mim. Quando percebi sua primeira censura, olhei-a com os olhos declarativos de que iria embora quando melhorasse um pouco. Ela, feliz, esperou que a semana passasse, preparou meu banho, alimentou-me e amou-me até o dia de eu ir embora. A pequena cama vazia confortou-lhe com a preocupação diminuída, mas ainda sentira saudades de um bicho de estimação. Arranjou, noutro dia, um vira-latas perdido na chuva.

3 comentários:

Anônimo disse...

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Unknown disse...

Oi Flávio,
Belo texto...
O que está esperando para escrever um livro???
Adorei seu Blog...
MAs tem tempo que não posta...
Sempre que tiver novidades avise!
Beijos...
Fernanda Lauton

Unknown disse...

Eu li re-li e engoli choro aqui onde eu estou, Nao sei se o por causa do meu pseudo-estado de mel�ncolia meio emo, mas senti uma pena t�o grande dessa "cachorrinho". Rs ..O teu texto me parou como diante de uma pintura que se mexe e entra de fininho na gente. quando se ve somos parte dele (a). adoro descobertas como esta.
Parab�ns!
Jessica Albuquerque

 
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